A literatura latino-americana é um território de força, ferida e invenção. Entre selvas políticas, centros urbanos caóticos e silêncios interiores, muitas escritoras têm traduzido o espírito do continente em palavras que cortam, acolhem e transformam.
Ainda assim, muitos desses nomes continuam pouco conhecidos fora de seus países de origem — e às vezes até dentro deles. Seja por conta da barreira do idioma, da pouca circulação de suas obras ou do apagamento sistemático de vozes femininas, o fato é que a potência dessas autoras muitas vezes permanece à margem do mainstream.
Este artigo é um convite para ampliar o repertório, conhecer outras vozes e se deixar atravessar por narrativas que vão da poesia visceral à prosa política, do realismo sujo ao fantástico reinventado.
Aqui estão 10 escritoras latino-americanas que você precisa conhecer — não como uma lista definitiva, mas como um ponto de partida para leituras que atravessam geografias, histórias e afetos.
1. Diamela Eltit (Chile)
Diamela Eltit escreve como quem fere e costura ao mesmo tempo. Nascida em Santiago, no Chile, durante a década de 1950, sua obra é marcada por uma crítica radical às estruturas de poder — especialmente o autoritarismo político, o patriarcado e a marginalização social.
Durante a ditadura de Pinochet, Eltit participou de intervenções artísticas do grupo CADA (Colectivo de Acciones de Arte), utilizando a performance e a literatura como formas de resistência simbólica. Sua escrita rompe com o formato tradicional do romance e mergulha em territórios híbridos, onde o corpo, a linguagem e a história se entrelaçam.
Seus livros não são fáceis — e não pretendem ser. Mas há uma força vibrante e necessária em obras que desafiam o leitor a abandonar o conforto e a repensar a própria leitura.
Por que ler?
Porque Diamela Eltit é uma autora que não entrega respostas, mas expõe feridas e inquietações com uma profundidade rara. Sua obra é um gesto de ruptura — e também de escuta.
Por onde começar?
Jamais o fogo nunca — uma narrativa intensa e fragmentada sobre memória, envelhecimento e revolução, publicada no Brasil pela Relicário Edições.
2. Fernanda Melchor (México)
Fernanda Melchor escreve com a fúria dos ventos que anunciam tempestade. Sua prosa é densa, vertiginosa, quase sem respiro — como se cada frase carregasse o peso da urgência. Nascida em Veracruz, em 1982, ela é uma das principais vozes da nova geração de escritoras latino-americanas.
Sua obra mais conhecida, Temporada de furacões, parte de um crime brutal em uma vila pobre do México para construir um romance que mistura jornalismo narrativo, realismo sujo e mitologia local. A escrita de Melchor é uma espécie de ritual: nos coloca diante do horror, mas nos convida a permanecer.
Ela dá voz aos marginalizados, denuncia a misoginia estrutural e escancara o abismo entre as classes sociais com uma força literária que não passa despercebida.
Por que ler?
Porque Fernanda Melchor nos obriga a olhar o que preferiríamos ignorar — e faz isso com uma linguagem que é ao mesmo tempo brutal e liricamente elaborada.
Por onde começar?
Temporada de furacões — publicado no Brasil pela Mundaréu, é um romance incômodo e necessário, considerado um dos livros mais impactantes da literatura latino-americana recente.
3. Gioconda Belli (Nicarágua)
Gioconda Belli é um nome central da literatura da Nicarágua — e da luta revolucionária também. Poeta e romancista, ela vive entre a doçura da palavra e a força do enfrentamento político. Nos anos 1970, integrou a Frente Sandinista de Libertação Nacional e pagou o preço do exílio por suas ideias.
Sua escrita combina erotismo, crítica social e um lirismo que brota mesmo em meio à violência. Em seus romances e poemas, o corpo feminino é território de prazer, resistência e transformação.
Belli é daquelas autoras que falam de amor e de revolução na mesma frase — e faz isso com naturalidade, sem perder a elegância nem o vigor da linguagem.
Por que ler?
Porque sua obra celebra a mulher como sujeito histórico, sensível e sexual — rompendo com os estereótipos e afirmando a potência do feminino em todas as suas dimensões.
Por onde começar?
A mulher habitada — publicado no Brasil pela Editora Record, é um romance que mistura realismo e política numa trama sobre herança indígena, ditadura e emancipação feminina.
4. Samanta Schweblin (Argentina)
Samanta Schweblin é mestre em criar atmosferas de desconforto. Suas histórias parecem simples à primeira vista, mas logo revelam fendas, estranhamentos e uma angústia subterrânea que cresce a cada parágrafo. Nascida em Buenos Aires, em 1978, ela é uma das escritoras argentinas mais celebradas da atualidade.
Seus contos e romances transitam entre o realismo e o fantástico, com tramas que muitas vezes beiram o pesadelo — não por causa de monstros externos, mas pelos pequenos horrores que habitam as relações humanas e as estruturas sociais.
A escrita de Schweblin é enxuta, econômica, mas carregada de tensão. Ela sabe o que não dizer — e é nesse silêncio que suas histórias mais nos atingem.
Por que ler?
Porque sua literatura perturba sem precisar gritar. E porque ela transforma o ordinário em algo profundamente inquietante.
Por onde começar?
Distância de resgate — publicado no Brasil pela editora Todavia, é um romance curto e hipnótico que mistura maternidade, envenenamento ambiental e afeto com tons de suspense quase metafísico.
5. Selva Almada (Argentina)
Selva Almada escreve com uma força contida, mas devastadora. Nascida no interior da Argentina, sua literatura mergulha em atmosferas áridas, masculinas e violentas — e é justamente ali que ela insere sua escrita como denúncia e desconstrução.
Almada é conhecida por abordar as tensões do patriarcado em contextos rurais, usando uma linguagem seca, poética e precisa. Seus livros misturam silêncio e brutalidade, desejo e culpa, sempre com personagens marcados por ausências e traumas.
Seus romances, embora curtos, têm o poder de permanecer ressoando por muito tempo. Há algo de inquietante em sua maneira de narrar o não-dito — e nisso reside boa parte de sua potência.
Por que ler?
Porque Selva Almada lança luz sobre o machismo estrutural latino-americano sem cair em discursos prontos — sua literatura é ferida aberta, mas também gesto político.
Por onde começar?
O vento que arrasa — publicado no Brasil pela editora Todavia, é uma joia literária que explora o encontro entre fé, masculinidade e redenção no coração do deserto argentino.
6. Conceição Evaristo (Brasil)
Conceição Evaristo escreve com o corpo inteiro — e com a ancestralidade como guia. Mineira, mulher negra, professora e escritora, sua literatura carrega a marca da escrevivência: um conceito que une experiência, memória e escrita como forma de sobrevivência e resistência.
Seus contos, romances e poemas falam de desigualdade, racismo, violência de gênero, mas também de afeto, dignidade e pertencimento. Conceição não escreve apenas para denunciar — ela escreve para reconstruir imaginários, para lembrar que outras histórias são possíveis.
Sua prosa é lírica e ao mesmo tempo direta. Não há distanciamento: ela nos coloca dentro das casas, dos becos, dos corpos e dos silêncios que a literatura tradicional tantas vezes ignorou.
Por que ler?
Porque Conceição Evaristo desloca o centro da narrativa, devolvendo protagonismo às vozes negras, femininas e populares — com beleza e contundência.
Por onde começar?
Olhos d’água — publicado pela Pallas Editora, é um livro de contos curtos e poderosos que revela toda a sensibilidade e força de sua escrita.
7. Gabriela Wiener (Peru)
Gabriela Wiener é uma autora que transforma a intimidade em trincheira. Jornalista, poeta e escritora, ela nasceu em Lima e hoje vive em Madri, mas sua escrita permanece profundamente enraizada nas contradições latino-americanas — e em seus próprios abismos pessoais.
Wiener mistura crônica, ensaio, autoficção e poesia com uma liberdade que desafia gêneros e convenções. Sua literatura trata de sexualidade, maternidade, colonialismo, raça, imigração, não-monogamia — tudo isso com uma honestidade cortante e um senso de humor ácido.
Ela escreve como quem se despe em público, mas sem espetáculo: há ali um desejo real de dizer o indizível, de atravessar o tabu, de transformar a vergonha em linguagem.
Por que ler?
Porque Gabriela Wiener prova que o pessoal é sempre político — e que a vulnerabilidade pode ser uma forma de revolução.
Por onde começar?
Exploração — publicado no Brasil pela editora Moinhos, é uma coletânea de crônicas e ensaios íntimos que confrontam padrões de sexualidade, poder e identidade com irreverência e profundidade.
8. Marosa di Giorgio (Uruguai)
Ler Marosa di Giorgio é como atravessar um bosque encantado em que cada flor pode ser um feitiço e cada fruta, um presságio. Nascida em Salto, no Uruguai, em 1932, e falecida em 2004, Marosa foi uma das vozes mais singulares da poesia latino-americana do século XX.
Sua escrita é marcada por imagens delirantes, erotismo vegetal, visões infantis e um universo onírico em que natureza, desejo e morte coexistem em estranha harmonia. A linguagem de Marosa não se explica: ela se sente — ou se recusa. É preciso abrir mão da lógica e entrar no ritmo de seu encantamento.
Apesar de cultuada em círculos literários, sua obra ainda é pouco conhecida pelo grande público, talvez por ser tão difícil de rotular. Mas quem entra em seu mundo raramente sai ileso.
Por que ler?
Porque sua poesia é uma experiência sensorial que expande os limites do corpo, da linguagem e da realidade. Uma espécie de alquimia literária.
Por onde começar?
A flor de lirolay — publicado no Brasil pela editora Moinhos, é um mergulho nos delírios líricos de Marosa, em que infância, erotismo e natureza se confundem em um só gesto poético.
Conclusão
A literatura latino-americana é um organismo vivo, pulsante, atravessado por dores históricas e belezas indizíveis. E as mulheres que escrevem a partir desse chão — com suas línguas, corpos, feridas e mundos — fazem mais do que contar histórias: elas ampliam o que entendemos por escrita, por identidade, por existência.
Essas oito autoras não representam um recorte definitivo, mas um caminho possível entre muitos. Ler cada uma delas é abrir uma nova janela para o continente — com sua multiplicidade de vozes, seus atravessamentos políticos, suas experiências radicais de linguagem.
Na dúvida por onde seguir, comece por onde doer, ou por onde encantar. O importante é não sair ilesa.
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