Manifesto

Andrômeda foi nome de constelação,
figura de sacrifício, imagem de travessia.
Mas talvez ela fosse mais do que disseram.

Andrômeda, frequentemente evocada como “a Dama Acorrentada” ou “a Mulher Acorrentada”, é uma das figuras mais trágicas e emblemáticas da mitologia antiga — uma presença envolta em brumas temporais e múltiplas versões que atravessam séculos. A tragédia homônima de Eurípides, hoje perdida, sugeria um drama pungente cuja memória ressoa apenas em fragmentos e ecos mitopoéticos.

Para além da moldura helênica, estudiosos reconhecem ressonâncias deste mito em narrativas cosmogônicas mais antigas, como a da deusa babilônica Tiamat. Tiamat, personificação do caos primordial, engendra exércitos de demônios para vingar a morte do consorte Apsu, mas é derrotada por Marduk, que divide seu corpo e com ele forma o céu e a terra, instaurando a ordem cósmica. Embora distintas, Andrômeda e Tiamat compartilham a simbologia do feminino sacrificial — corpos potentes que, ao serem subjugados, marcam o nascimento de uma nova ordem. São arquétipos do que é devorado para que algo se erga, mesmo sob o signo da violência ou do heroísmo.

Astronomicamente, Andrômeda é uma das 48 constelações catalogadas por Ptolemeu no século II d.C. e permanece como uma das 88 constelações reconhecidas na astronomia moderna. Localizada no hemisfério celestial norte, é visível com maior clareza nas noites de outono do hemisfério boreal. Sua posição no firmamento é vizinha a outras constelações derivadas do mesmo ciclo mítico — como Perseu, Cassiopeia e Cefeu — compondo, nos céus, um teatro estelar da velha tragédia que a eternidade preserva.

Andrômeda, Senhora do Tempo

Na tradição mitológica, Andrômeda surge como um corpo feminino lançado ao sacrifício — a filha punida por um orgulho que não era seu, a virgem oferecida ao monstro que emerge não das águas, mas do imaginário masculino. Ela é, nesse contexto, apenas mais uma vítima passiva de um enredo escrito por homens e para homens, onde até a salvação — encarnada em Perseu — serve mais à afirmação do herói do que à libertação da mulher.

Mas e se lermos esse mito sob outra luz? E se Andrômeda não for apenas a presa acorrentada, mas a única que compreende a arquitetura do tempo em que está inserida?

Acorrentada à rocha, ela não é símbolo da fragilidade, mas da suspensão. Seu corpo detém a pausa: entre o monstro que se aproxima e o herói que ainda não chegou. Entre o passado da mãe e o futuro do marido. Essa posição liminar — entre o terror e o desejo — a inscreve como figura de travessia, de limiar. Não é à toa que seu destino é o céu. Ela não apenas sobrevive: ela é transformada em constelação, ou melhor, em instrumento de medida, orientação e memória.

Enquanto Perseu carrega a cabeça da Medusa — símbolo máximo da morte e do tempo interrompido — Andrômeda carrega o tempo em sua forma contínua. Ela não petrifica: ela regula. Seu corpo celeste não fulmina, mas organiza. Seu mito, lido contra a maré da narrativa heroica, revela uma mulher que não espera ser salva, mas que sustenta em si os ciclos maiores da existência — a oscilação entre destruição e fertilidade, entre caos e cosmo, entre monstruosidade e ordem.

Neste sentido, Andrômeda se aproxima de figuras arcaicas como Tiamat, a deusa babilônica do caos primordial. Ambas representam uma força criadora que, para que uma nova ordem masculina se instale, precisa ser vencida, silenciada, ou transformada em outra coisa: esposa, constelação, matéria. Mas enquanto Tiamat é rasgada em dois para formar céu e terra, Andrômeda é transfigurada em um ponto fixo do firmamento — eterna, porém cativa.

É possível, no entanto, reivindicar outra leitura: Andrômeda não é prisioneira das estrelas, mas guardiã do tempo que elas marcam. Ela não é resquício do mito, mas fundamento da contagem. A constelação que leva seu nome não apenas a homenageia — ela a perpetua como estrutura simbólica. E talvez, ao contrário de tudo que nos ensinaram, tenha sido ela quem viu o herói e o escolheu, não como salvador, mas como peça necessária em um jogo que ela, desde o início, compreendia melhor que todos os deuses.

Ela não é prisioneira das estrelas — é aquela que as orienta.

Ao invés de interpretá-la como passiva, devemos reconhecê-la como a única figura realmente consciente do que está em jogo. Sua coragem não se manifesta em gestos grandiosos, mas na aceitação lúcida de seu destino — não como submissão, mas como enfrentamento. Andrômeda não foge, não clama, não se esconde. Ela encara o horror, permanece firme diante da violência que a cerca. Não é a covardia que a prende à rocha, mas uma coragem silenciosa, rara: ela escolhe estar ali, enfrenta o monstro com o próprio corpo, com a própria presença. E ao fazer isso, desloca o centro do mito.Andrômeda é quem sustenta a tensão. É sua permanência — não a chegada de Perseu — que produz a virada. É ela quem transforma o sacrifício em resistência, e o terror em revelação. Perseu pode derrotar o monstro, mas a vitória simbólica é dela. A constelação que carrega seu nome não é homenagem à beleza nem ao matrimônio, mas à força de existir entre extremos: o castigo que não lhe pertence e a salvação que ela própria convoca.

Andrômeda

Filha da vaidade de uma rainha
e do trono etíope de Cefeu,
Andrômeda resplandecia —
tão bela que ofendeu o mar.

As Nereidas, feridas, clamara;
Poseidon, em fúria, ergueu Cetus,
monstro do abismo, flagelo das praias.

O oráculo — sempre homem — decreta:
só o sangue salvaria.
E foi a filha, não a culpa, que pagou.

Mas o que ele não sabia
é que o sangue dela
já pulsava nos ossos do futuro.

Acorrentada à rocha, entregue ao horror,
brilhou entre as ondas — frágil, firme —
não à espera do heroi,
mas da hora.

Perseu chegou, sim,
com os olhos cheios de morte e destino.
E foi na carne dilacerada do feminino
que a ordem lançou seus alicerces.

Do sacrifício se fez aliança,
do terror, um canto nupcial.

Mas Andrômeda, que fora presa,
ergueu-se eterna,
nomeada entre as estrelas.

Hoje, Andrômeda guarda o segredo do tempo.
Permanece, assim, incandescente,
livre do esquecimento.

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